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“É um escalonamento falso”, diz pesquisadora da UERJ sobre método avaliativo aplicado em creches do Rio de Janeiro

Enviado por on 27 de outubro de 2011 – 19:35nenhum comentário

Em entrevista ao Observatório da Educação, a professora, pedagoga e doutora em educação Lígia de Aquino, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), fala sobre o método de avaliação e monitoramento do desenvolvimento infantil Ages and Stages Questionnaries-3 (ASQ-3) que está sendo aplicado pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro. Aquino reflete sobre esse instrumento avaliativo e suas possívei implicações para a educação infantil. Leia a seguir a entrevista na íntegra.

Observatório da Educação – Qual a sua opinião sobre o sistema de avaliação ASQ-3 para educação infantil?

Lígia de Aquino -Esse instrumento, assim como outros, é uma proposta por um sistema de avaliação de larga escala. A princípio e de alguma forma, pretende ver impactos, ou seja, em que medidas determinadas ações podem repercutir positiva ou negativamente [na educação]. Mas um sistema de avaliação, quando trabalha com a ideia de escala, está trabalhando com a ideia de medidas, aferição e estabelecimento de padrões e parâmetros. Trabalha com a lógica de comparação, tanto de criar padrão como de comparar e ranquear. Nesse ponto, vários educadores, cientistas sociais e políticos fazem críticas ao instrumento, por sua lógica de medição para fatores ou fenômenos que são altamente variáveis, imprevisíveis e dinâmicos que é o comportamento humano, a dinâmica coletiva e social.

Observatório – Quais os questionamentos quanto a esse método?

Lígia -Como medir coisas que não são mensuráveis? Como ranquear ou escalonar aquilo que, por sua vez, não tem como medir? É um escalonamento que podemos dizer que é falso. Aqueles que acreditam nisso, montam uma estratégia e apresentam como se aparentemente tudo fizesse sentido, mas, os números por si mesmos não falam sozinhos. Há um não convencimento de que é possível medir algo que não é mensurável. Você valora e pode dar significado, agora atribuir valor/quantidade é um de nossos questionamentos.

Observatório – A avaliação estabelece padrões únicos avaliativos?

Lígia -Outra crítica é qual a finalidade de se estabelecer padrões e para que padronizar comportamentos, o que estamos pretendendo? No campo da educação, qual o projeto de formação humana, qual a visão que a gente tem do que vêm a ser o ser humano, os coletivos humanos, a sociedade em que a gente vive? O que a gente pretende? São modelos padronizados para lidar com o diverso, o variável, com o que está fora do previsto. Isso não quer dizer que a gente não possa ter planejamento, mas um que seja aberto e não fechado. Há toda uma tensão de fundo que eu entendo ter um caráter ideológico, mostra a visão de mundo que temos e se é uma visão de um mundo padronizado e controlado ou aberto ao imprevisível, à criação, ao surpreendente e ao improvável.

Observatório – Pode-se afirmar que há uma relação entre a avaliação e o currículo?

Lígia – No campo da educação infantil, uma das coisas que eu discuto é a questão do currículo da educação infantil. Quando você estabelece um instrumento de avaliação, ele aparentemente diz que é um instrumento, mas indiretamente está pautando o currículo. Se ali está dito que a Secretaria, a direção ou alguém irá avaliar e observar determinados comportamentos, conhecimentos, hábitos e aptidões, de certa forma se direciona o que se quer para [a formação] de determinadas pessoas.

Observatório – Fale sobre esse direcionamento.

Lígia -É um instrumento muito detalhado para larga escala, não é uma coisa de se estabelecer alguns princípios onde cada rede, grupo, instituição vai discutir dentro daqueles princípios o que de fato ela quer observar, como irá observar e em que momento. Nesse sentido, você deixa que emerja de fato a riqueza daquele grupo, as suas possibilidades. Se já se define o que é esperado da criança, se começará a investir que ela faça determinado tipo de coisa porque chegará um momento em que alguém preencherá o questionário e já se começará a treinar a criança, a traçar, olhar somente para algumas questões e a desprezar outras, igualmente ou mais relevantes, para um determinado grupo.

Observatório – Como a avaliação ASQ-3 parece se relacionar com o currículo?

Lígia -Nesse caso, o currículo está sendo visto como um currículo prescrito, pré-definido e todo mundo terá que fazer igual. Existe uma distinção no campo do currículo, por alguns especialistas da área que vão trazer outra ideia que é ao invés do currículo ser um instrumento para formar pessoas, seria um instrumento para narrar as nossas experiências, o currículo como narrativa. Nesse caso, se tem uma intencionalidade, mas é aberta para aquilo que emerge nas relações dos grupos, das experiências vividas nos grupos e nos contextos que em cada momento vão se colocando, o currículo sendo construindo nas relações com os sujeitos.

Observatório – Pode citar outros exemplos de consequências em se estabelecer um modelo prescrito?

Lígia -Fazendo um paralelo pode-se pensar como os vestibulares acabam de certa forma dirigindo o que irá acontecer no ensino médio. Se (conhecidas universidades) ou agora o ENEM estabelecem os campos do conhecimento, a maneira de traçar o conhecimento e se é mais analítico ou de memorização, isso indiretamente começa a influenciar os currículos das instituições e das redes porque o sujeito terá que responder mais adiante, àquele instrumento. Isso para pensarmos também na educação infantil, porque quando se estabelece um instrumento único e de larga escala, você começa a dizer que em todos os cantos (do país) as crianças terão que ter aquele comportamento mínimo esperado.

Observatório – E quais são os limites do método avaliativo?

Lígia -Está se fazendo uma avaliação da criança e não das condições gerais do trabalho. Não se pergunta se existem livros disponíveis na instituição, se a professora diariamente conta história ou se há uma área externa, o que seriam formas de avaliar as condições de trabalho. Quando se tem uma ficha de avaliação para cada criança, se está fazendo uma avaliação de cada criança. Agora, que uso vai ser feito disso, não está muito claro.

Observatório – Quem são os envolvidos na proposição desse método?

Lígia -Tem um corpo de psicológicos, de uma linha da psicometria, dessa ideia de que é possível medir comportamentos e atitudes, associado a um grupo de economistas. Parece que estamos voltando aos anos 70 com os economicistas todos com esse discurso de que tem que investir no capital humano e na preparação para o trabalho para fazer crescer a economia. Isso associado a um discurso de que é possível escalonar a cultura e o conhecimento. Então, é aquele discurso de que a população mais pobre tem um déficit cognitivo, linguístico e cultural e que, portanto, tem-se que fazer uma educação compensatória. Isso que estamos vendo são programas de novo com essa ideia, de como fazer um treinamento para cobrir aquilo que eles entendem como déficit. Parece uma nova roupagem, chamada agora de neurociência, antes era a psicometria.

Observatório – Quais os interesses aparentes nisso?

Lígia – A impressão é que é uma tentativa de padronizar os currículos e os comportamentos. A prefeitura do Rio criou cadernos para (dizer) o que as professoras terão que fazer a cada dia em sala com as crianças. As professoras viram tarefeiras, cumprindo tarefas quase como aquele personagem Carlitos, de Charles Chaplin, apertando parafusos numa linha de montagem. Cada dia terá uma tarefa a cumprir, cumpriu ou não, passe adiante. Além disso, a padronização vem associada com ações, com produtos que são modelos de educação de pacote fechado que contém planejamento, currículo e material. São esses sistemas privados que têm sido vendidos tanto para a rede privada como para a rede pública, são pacotes fechados. De certa forma, quando se faz essas avaliações, se ajuda a definir certo padrão para alguém chegar, criar e vender um pacote fechado.

Observatório – E como os profissionais em educação infantil do Rio de Janeiro receberam a política?

Lígia -Há quase que uma situação de espanto. Eu percebo que o professorado por um lado é parte reativa, mas que não sente muito espaço e condição para reagir. O sistema está muito bem montado, existe uma forma de controle muito intensa e uma vigilância permanente. Se as coisas não caminham direito, corre-se o risco de perder a função e há uma grande relação de insegurança entre os professores.

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